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Editorial
Este volume da Africana Studia, subordinado ao tema Modernidade e repressão em Angola, incide na história de Angola, um Estado erigido num território desenhado a partir dos devaneios colonialistas, dos conflitos e, bem assim, das concertações diplomáticas na Europa entre finais de oitocentos e inícios de novecentos. A heterogeneidade existente e recriada pelas dinâmicas colonialistas fica indiciada por este conjunto de artigos sobre a Angola da era colonial e do pós-independência.
É sabido, a presença de portugueses nalguns pontos desse território era plurissecular. Mas, nesse passado distante, a dominação não era fácil, desde logo pelo enraizamento dos europeus na terra. Fabiana Schleumer alude à ação da Inquisição na segunda metade do século XVIII, baseando-se num processo iniciado por denúncias de crimes de “Artes Mágicas”. Para a autora, tais “crimes”, de que participavam os reinóis, compreendem-se à luz das debilidades da missionação e do processo de crioulização
no território. Por isso, e apesar do reforço do discurso missionário pela ação inquisitorial, a Igreja não deixou de se pautar pela ambiguidade entre o discurso e a prática, bem como pela conveniente contemporização com as “artes” da terra.
A outro nível, em finais de setecentos os portugueses julgaram ter razões para deixar de contemporizar com os que equivocadamente encarariam como concorrentes. Segundo Thiago Sapede, ao tempo, diferentemente das presenças inglesa e francesa em pontos costeiros, a mais adentrada presença portuguesa firmava-se sobre redes de mercadores luso-africanos e na tentada imposição da vassalagem a chefes locais. Em desvantagem no plano comercial, Portugal tentou-se, em finais do século XVIII, por uma política expansionista, traduzida na tentativa de tomada militar do porto de Cabinda controlado por mercadores franceses. De posse deste porto, os portugueses almejavam dominar as rotas de escravos do interior através da desejada mediação do mani Kongo. Quase de pronto foram desalojados do seu ainda incompleto forte em Cabinda. Em todo o caso, esta tentativa militar dos portugueses na turbulenta década de 1780 como que anunciou as profundas alterações nas décadas posteriores para as várias entidades africanas, entre elas, o reino do Congo.
Em cotejo, o artigo de Cláudia Castelo e o texto inacabado de Juliana Bosslet indiciam as diferenças de exercício do poder no colonialismo tardio – noção usada em sentidos diversos e que importaria clarificar – em contextos rurais e urbanos. Cláudia Castelo alude às vedações de arame farpado como ferramenta e símbolo do “desenvolvimentismo repressivo” no sudoeste de Angola. No final do colonialismo assomava o interesse numa agricultura moderna associada às potencialidades técnicas importadas pelo colonizador. Porém, tal implicava a subversão da propriedade e do
sagaz uso costumeiro da terra, que permitira aos Mucubais, ou Kuvale, recuperar da agressão colonialista das décadas precedentes. Na verdade, baseada no arame farpado, a arrogada superioridade dos empreendimentos colonialistas, que, aliás, quedou por provar, era atrativa por ser suportada por axiomas políticos indiscutíveis num regime colonial ditatorial, axiomas conducentes à irrestrita apropriação da terra pelos colonos. Contra tais discricionariedades, um saber técnico começou a afirmar a insensatez das opções políticas e jurídicas coloniais. Todavia, porque a terra parecia um garante perene de uma futura acumulação, nas instâncias subalternas tendia-se à replicação da cegueira que toldava o processo de formação das decisões na cúpula do regime1. Afinal, recorrentemente o racismo socorria-se de novos quesitos e fetiches – modernização e quejandos – que como que tornavam imperiosa uma apropriação indevida e injustificada de recursos naturais, mormente de terra, em prejuízo dos colonizados. As coniventes ou, quiçá, apenas subservientes autoridades coloniais não só ignoravam o passado de conflitos, como eram incapazes de qualquer avaliação isenta dos resultados económicos dos diversos tipos de exploração pecuária.
A única nota dubitativa sugerida por este interessantíssimo texto é a da caracterização do tardo colonialismo (só) pelo desenvolvimentismo repressivo. Ao tempo, embora prevalecesse a força bruta do poder eivado do racismo, percebe-se que, apesar de hegemónico, o substrato cultural racista já não estava sozinho do cenário colonial2.
As dinâmicas sociais e políticas eram assaz diversas em Luanda, conforme o sugere o texto inacabado de Juliana Bosslet3 sobre a persistência, ilegal mas recorrente, de práticas segregacionistas posteriores à abolição do estatuto do indigenato em 1961. Juliana Bosslet pretendia abordar, não a resistência frontal à segregação, mas a apropriação e o uso do discurso oficial pelos africanos para reivindicação da cidadania, isto é, de direitos no dia-a-dia. Deixou traçada uma resenha da assunção do imperativo da conquista das almas e da preparação institucional para a respetiva concretização.
Apesar do que de impositivo tiveram as visões ideológicas à época da independência, hoje se convirá em que só uma visão condescendente e parcial da história podia alimentar a expectativa de um pós-independência sem confrontos, mormente nas cidades. Ao cabo de décadas em que socialmente pareceu quase irrelevante, o questionamento político tornou-se audível e expressivo por ocasião da independência. Mas seria sufocado e assim permaneceria até há anos.
Susan de Oliveira fala-nos do artivismo nos derradeiros anos do governo de José Eduardo Santos, um momento a entender não como o ocaso natural de um governo longevo, mas como um período marcado pela indignação contra as injustiças sociais e de luta pela democracia. Para a autora, tal dever-se-á ao artivismo, uma nova linguagem política pautada pela estetização e pela dimensão performativa, que lhe conferem um “grande potencial” na replicação de novos agenciamentos na sociedade civil4.
Para a autora, o artivismo afirma-se como uma ação reivindicativa e, simultaneamente, como uma rutura, mormente no tocante à participação e à criação artística. Em jeito de arrogada interpelação à elite política, a violência, a miséria, a degradação humana cotidiana são politizadas numa estética dos corpos e dos eventos oponível à estética capitalista do prazer e do consumo de elite. Nessa medida, a politização através do desempenho performativo denuncia as mazelas sociais resultantes de décadas de um poder inquestionado.
É conhecido o reiterado zelo dos dirigentes na prevenção, enquadramento e contenção de fenómenos de dissidência, desde os de vestes religiosas até aos mais afrontosamente políticos5. Plausivelmente, com mais ou menos sageza, os dirigentes não podiam deixar de atentar no artivismo assente no desempenho performativo tornado aliciante quer pela estetização do protesto, quer pela empatia de tal protesto com o que, embora errática e difusamente, vai lavrando mundo fora.
Conquanto se afigure problemática a ideia de, pela sua natureza e pelas suas causas, o artivismo convocar a possibilidade de repressão por “as várias formas de agir do Estado de Exceção se faze[re]m presentes tanto nos regimes ditatoriais como nos democráticos”, registe-se a opinião de que, para além da esperada atuação das “forças repressoras do Estado angolano”, o que estava em jogo era a capacidade das instituições democráticas se sobreporem à força da repressão do Estado. Ora, arriscaria dizer que não só tal dúvida não se desfez, como, obviamente, as recentes alterações políticas se devem a processos de transição não surpreendentes, antes costumados, no seio dos grupos dominantes em regimes fechados.
As representações de Angola são também os mais ou menos arruinados artefatos de guerras recentes? Na esteira de pesquisas arqueológicas sobre campos militares, o texto de André Serdoura desdobra-se entre uma abordagem assaz sintética e parcelar da história militar de Angola, mormente do sul do território, e a exposição de possibilidades de pesquisas arqueológicas nos locais desses conflitos, de que se fez a atual Angola…
A propósito, queda por saber como vivem e se relacionam as populações com as paisagens pautadas (e, porventura, minadas) pelos vestígios da guerra recente. Ao menos para certas populações, as evocações desta guerra não serão mais intensas6 – porque politicamente mais decisivas – do que as de um passado pleno de agravos como o das categorizações raciais em que se escorava o colonialismo?
Que a legislação colonialista sobre a assimilação funcionava como um mecanismo avesso ao seu pressuposto fim7 demonstra-lo também Andrea Marzano, que inicia o seu texto com a enunciação de uma das encruzilhadas éticas em que se podem
envolver as investigações históricas. À sugestiva pergunta “Não seria a indiferença o caminho mais curto para o esquecimento?” responder-se-á que consentir na indiferença pode levar ao esquecimento e ao não conhecimento, conquanto cumpra lembrar que (querer) não esquecer não se desdobra necessariamente no completo e cabal conhecimento do passado.
Como a autora pretexta, para evidenciar a exploração, a violência e as arbitrariedades do colonialismo, nos jornais encontraria notícias com menção a violência explícita, mormente nas zonas rurais. No entanto, a análise da interação em Luanda, referida por teóricos do luso-tropicalismo como locus privilegiado das supostas peculiaridades do colonialismo português8, pareceu crucial para a desconstrução deste discurso prevalecente até aos dias de hoje. Assim, anúncios inocentes, notas irrelevantes e notícias corriqueiras permitem perceber a naturalização de pressupostos fundamentais do colonialismo, como o racismo, a tendência para a segregação, a inexistência de uma ética valorativa do trabalho e a profunda desumanização dos africanos no imaginário colonial.
A novidade não reside na desconstrução da propaganda do assimilacionismo e da integração no colonialismo quanto nos caminhos que Andrea Marzano escolheu percorrer. A autora pretendeu, ao invés de revelar situações desconhecidas, iluminar aspetos evidentes do colonialismo nas décadas de 1930 e 1940. Comentando anúncios e notícias corriqueiras, enfatizou pressupostos, costumes e características que, de tão óbvias, pareciam não causar nenhum espanto. Em face do rol de fronteiras estabelecidas tacitamente e/ou por via da coerção no quotidiano de Luanda, Andrea Marzano quer recuperar a indignação diante de práticas e representações a não esquecer, práticas e representações naturalizadas nos anos 1930 e 1940 e propositadamente apagadas da memória social portuguesa a partir dos anos 1950.
Precisamente, o colonialismo revelou-se sempre mais plural do que, por exemplo, a sua definição ou a sua evocação para a luta anticolonial. Do texto de Maria Alice Mendes Correia sobre as transformações urbanísticas em Luanda sob o Estado Novo retém-se a fissura no bloco colonialista, embora numa dimensão da vida coletiva sem implicações políticas imediatas.
No domínio urbanístico, aflorava o inconformismo dos técnicos, por vezes, com algum intuito de contrariar o regime do Estado Novo e, em todo o caso, tentando impor algo do que de mais moderno se erguia pelo mundo. Embora sem assunção de significados políticos, também assim sucedeu noutras cidades coloniais, não espantando que a criação urbanística tivesse sido secundada pela edilidade de Luanda ansiosa por atestar o progresso materializado na construção.
Para os cientistas, a interpelação política e ética deveria ser sempre desafiante. É deste modo que se pode ler a entrevista de um dos pioneiros do pensamento ecológico angolano, Jacinto Rodrigues. É assim, com um “balanço do futuro”, que termina esta coletânea de estudos e reflexões sobre as contradições da modernidade de Angola.
Augusto Nascimento*
Unidade I&D integrada no projeto com referência UIDB/00495/2020 (DOI 10.54499/UIDB/00495/2020) e UIDP/00495/2020.
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