Cadernos de Campo Manuel Viegas Guerreiro Mocambique, 1957

 

Índice:

  • Índice
  • Agradecimentos 9
  • Prefácio 11
  • I. Estudos  15
  • Viegas Guerreiro e o contexto da missão de 1957
  • 1. Manuel Viegas Guerreiro no contexto dos estudos Antropológicos  sobre a África de colonização portuguesa 17
  • 2. A Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português 25 
  • 3. Os originais desta publicação: um caderno de campo e os relatórios  de campanha 31
  • II. Documentos 47
  • 1. O Caderno de campo 49
  • 2. O relatório da campanha de 1957 111
  • 3. Fotografias 205
  • III. Materiais de apoio 231
  • 1. Mapas 233
  • 2. Glossário 235
  • 3. Bibliografia 239
  • 4. Índices toponímicos 247

     


Prefácio

A presente Nota Introdutória proporciona-me o prazer de destacar, da vasta e diversa produção científica de Manuel Viegas Guerreiro a componente africana, em particular a que remete para o seu trabalho integrado na equipa de Jorge Dias e Margot Dias, desenvolvido no norte de Moçambique no ano de 1957, do qual resultou o volume IV da obra Macondes de Moçambiquecom o título Sabedoria, Língua, Literatura e Jogos (Centro de Estudos de Antropologia Cultural, Junta de Investigação do Ultramar, 1966).

À data, a antropologia portuguesa afastava-se de uma prática académica centrada na chamada Antropologia Física, muito dominada pela raciologia e nalguns casos categoricamente racista se tivermos em conta posições de figuras relevantes da época, nomeadamente em Coimbra e no Porto.

O estudo sobre os Macondes de Moçambique decorreu de uma decisão do Centro de Estudos Políticos e Sociais (Junta de Investigações do Ultramar), quando em 1957 criou, entre outras, a “Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português”. Em consequência, além do referido volume da autoria de Viegas Guerreiro, outros três foram publicados:

 

            - Aspectos históricos e económicos, J. Dias (1964).

            - Cultura material, J. Dias e M. Dias (1964).

            - Vida social e ritual, J. Dias e M. Dias (1970)

 

Esta viragem para a antropologia colonial, e na linha da florescente antropologia cultural americana seguida por J. Dias, veio impulsionar, entre outras áreas, a criação de um moderno museu de antropologia colonial, o designado Museu de Etnologia do Ultramar (1966), (hoje Museu Nacional de Etnologia) a que Viegas Guerreiro esteve associado, apenas como membro do conselho Cultural, já que entretanto assumira funções docentes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa regendo as cadeiras de Etnologia Geral e Etnologia Regional. A este organismo, onde tive o privilégio de estagiar com a equipa de J. Dias, entre janeiro e outubro de 1971, bem como a outras instituições que tutelam património africano, terão de ser atribuídas, hoje mais que nunca, importantes responsabilidades na construção urgente de novos laços com a África contemporânea que, para além da autonomia política plenamente consolidada no consórcio das nações, começa a reclamar também uma maior atenção à sua identidade cultural, em particular aos testemunhos dos seus antepassados. Observemos a propósito que, já por ocasião do seu trabalho de campo, Viegas Guerreiro, bem consciente do terreno em que se movia e reconhecendo “o estímulo, zelo e persistência de J. Dias”, acrescentou, o que era fundamental mas complexo à época, ou seja, que o objetivo da equipa era produzir “estudos estritamente antropológicos, que se demarcam de compromissos políticos”, um alerta sempre atual tendo em conta as armadilhas em que, com alguma frequência, caem certas formas de cooperação cultural.

Outra importante nota digna de registo é o reconhecimento publicamente assumido por Viegas Guerreiro de que o seu trabalho era realizado numa espécie de coautoria com os macondes que lhe transmitiam a informação; assim, foi nestes termos que se referiu ao artesão Muangalie: “homem de profunda sabedoria que por minhas mãos escreveu páginas das mais significativas deste trabalho”. Essas páginas tão significativas, transmitidas pelas mãos de Viegas Guerreiro são precisamente o que há de mais identitário neste IV volume sobre os Macondes: as tradições, as crenças, os laços simbólicos e o pensamento imagético dão vida às peças entretanto recolhidas e conservadas no museu.

Face à realidade atual da África pós-colonial parece-me importante ter em conta o significado destes repositórios de culturas diversas (objetos e contextos simbólicos) preservados principalmente em países europeus, ex-colonizadores ou não, que tutelam um imenso património cultural africano. São em regra objetos de prestígio de sociedades que desapareceram, património em grande parte esquecido, com exceção de algumas dezenas de peças-vedeta em circulação quase permanente nas grandes exposições da chamada “arte tribal”.

Não há dúvida que nesta situação “o passado de África está nas mãos dos que sempre o negaram” (Mia Couto) e isto explica algumas das ambiguidades que comprometem, nos nossos dias, uma saudável cooperação cultural tendo como referência esse património de uma Africa milenar, anterior à colonização, mas ainda pouco conhecida e nem sempre reconhecida pelos poderes políticos. O caso dos Macondes de Moçambique enquadra-se, pois, numa problemática mais ampla comum a muitos países da África subsariana. A afirmação, por vezes exacerbada, de um suposto estado-nação, quando a realidade é que há várias nações (grupos étnicos) dentro do mesmo Estado, tem sido em muitos casos uma forma dramática de violência cultural. As mais que legítimas ambições de progresso e unidade não podem atropelar o passado muito específico e singular de cada povo concreto (nação), com valores próprios e tradições que, se reconhecidos, só podem enriquecer e prestigiar um estado assumidamente multicultural.

O desenvolvimento social e cultural em que se tem afirmado a grande maioria dos países africanos assenta em três pilares fundamentais, a saber: a tradição, a cultura nacional atual e elementos culturais do ex-colonizador, nomeadamente a língua. Estes elementos poderiam ser enriquecidos com a assunção de um passado comum o que implicaria, por isso mesmo, alguma partilha daquele património, mais concretamente, daqueles objetos que são ao mesmo tempo objetos-memória dos povos africanos que os produziram e simultaneamente objetos-documentos integrando a história de distintos povos, no caso, europeus. Está sobejamente demonstrado que os patrimónios culturais se tornam tanto mais valiosos quanto mais partilhados É neste sentido que trabalhos como os de Manuel Viegas Guerreiro, tal como o de muitos outros investigadores, entretanto produzidos, são repositórios insubstituíveis à realização de uma partilha cultural verdadeiramente criativa, vantajosa para uns e outros, ou seja, potenciadoras das duas faces de uma verdadeira cooperação cultural.

 

                                       Coimbra, 31.03.2014

  1. L. Rodrigues de Areia

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