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Do prefácio
“Por outro lado, é evidente que em todas as formas em que o produtor directo permanece o ‘possuidor’ dos meios de produção e de trabalho necessários para produzir os seus meios de subsistência, a relação de propriedade deve fatalmente manifestar-se ao mesmo tempo como uma relação de amo e servidor.”1
Marx referia-se aqui às sociedades nas quais os produtores directos dispõem de acesso às condições de produção mas em que não regulam a repartição do excedente: uma fracção variável deste é apropriado por classes de não-produtores através da coerção, seja qual for a natureza (física ou simbólica) que esta assume. Nestas condições, a existência de classes dominantes implica que a autonomia “económica” dos produtores seja confrontada por um aparelho “político” capaz de os expropriar. Com efeito, algum tipo de poder “extra--económico” deveria ter surgido para os levar a repartir um sobreproduto que, de outro modo, teriam consumido por inteiro.
A explicação do que entender neste contexto por “económico” ou “político” já tinha sido feita e partira da comparação entre várias sociedades pré-capitalistas e o modo capitalista de produção. Antes de Marx, os economistas clássicos que se referiram às sociedades anteriores distinguiam o trabalho “livre” do “servil” (distinção estabelecida pelo menos desde Adam Smith). Como se viu acima, relativamente ao modo capitalista de produção, os modos pré-capitalistas (os que segundo Smith utilizam o “trabalho servil”) diferem sobretudo pela existência de instituições extra-contratuais, que aparecem como constrangedoras da grande massa da sociedade – isto é, por instituições “políticas”. Apenas com o aparecimento do trabalho assalariado – “livre” igualmente da propriedade dos meios de produção – a repartição do sobreproduto se faz exclusivamente através do mercado, lugar por definição do “económico”. Mesmo admitindo, quando uma maior sensibilidade histórica o permitia (caso de R. Jones, por exemplo), que esta separação entre a esfera do “político” e do “económico” se aplicava apenas ao modo capitalista de produção, foi a partir das identidades – “económico/mercado/igualdade” e “político/ coerção/desigualdade”2 – que se instalou a convicção da auto-suficiência da sociedade moderna perante o Estado: a famosa “mão invisível” reguladora.
Marx consolidou a distinção entre os modos pré-capitalistas e capitalista de produção, mas o seu sentido histórico deu-lhe um enquadramento muito diferente do dos economistas clássicos. Para além de criticar a autonomia do que se vai sucessivamente designando por “político”, “religioso” ou “económico”, formas nas quais as relações sociais predominantes se vão expressando, apercebeu-se de que por baixo dessas diferenças formais existia um traço estrutural comum de duração ainda mais longa: a necessidade de todas as sociedades de classes – inclusive e sobretudo, a capitalista – produzirem o respectivo aparelho de coerção.
Numa observação das relações capitalistas em funcionamento, essa necessidade parece não se fazer sentir, mas tudo muda quanto se coloca o problema da sua instalação. Descobre-se então que a normalidade do “económico” tem uma história, a da separação dos produtores dos meios de produção, e que esta é indissociável da “coerção”. Nada melhor do que a instalação do modo capitalista de produzir nos territórios coloniais para compreender o seu funcionamento nas metrópoles: dinheiro, máquinas, bens de consumo só se transformam em capital quando encontram assalariados para os valorizar. E no entanto, estes últimos só surgem depois de alguma força “política” os ter criado.
Conhecem-se os efeitos do “político” na constituição do mercado mundial, processo que Marx designou por “acumulação primitiva”. A reinstalação das relações esclavagistas, agora enxertadas na produção exclusiva de mercadorias, a expropriação do solo e a implantação de infra-estruturas materiais pagas através do imposto indígena foram traços comuns às sociedades africanas, asiáticas e americanas dos últimos séculos. No decurso destes processos, a visibilidade do aparelho coercivo nunca se perde e sobre eles se pode dizer, como fez Marx referindo-se à Idade Média europeia, que “a constituição política é a constituição da vida privada mas somente na medida em que a constituição da propriedade privada é uma constituição política”.3
O presente volume reúne alguns estudos de caso sobre a articulação entre o funcionamento do “económico” e do aparelho político em territórios coloniais africanos.
Seis desses estudos centram-se sobre o Estado esclavagista, isto é, o período do tráfico e da escravatura legalmente consagrados.
Elvira Mea
José Capela
Maciel Santos
1 MARX, K. – Le Capital, Paris, Ed. Sociales, 1977, vol.III, p. 716.
2 No quadro do pensamento ortodoxo, mesmo quando a antropologia pretende abrir perspectivas comparadas, a definição do “económico” aparece como uma premissa. POLANYI, K. – Comercio y Mercado en los Imperios Antigos, Labor Universitaria, Barcelona, 1976.
3 MARX, K. – Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Ed. Presença, Lisboa, p. 50.
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