Arquivos da África Austral - Potencialidades
Índice:
- Editorial (p. 5)
- Arquivos da África Austral – Potencialidades
- José C. Curto, Frank J. Luce e Catarina Madeira-Santos- The Arquivo da Comarca Judicial de Benguela: Problems and Potentialities (p. 11)
- Estevam C. Thompson - Fontes coloniais para uma história pré-colonial de Benguela, séculos XVII a XIX (p. 33)
- Ana Cristina Roque - Entre o colonizador e o colonizado: reflexões em torno da pertença e acessibilidade do corpus documental sobre a delimitação e demarcação das fronteiras de Moçambique (p. 71)
- Lorenzo Macagno - Trabalhadores moçambicanos na África do Sul: bastidores da controvérsia entre Marvin Harris e António Rita-Ferreira (p. 83)
- Frank J. Luce - Canadian missionaries, Angolan protestants, and the PIDE: research sources (p. 103)
- Drew A. Thompson - Color lines according to the photographer Ricardo Rangel (p. 119)
- Entrevista
- Edward Alpers – Immersed in the Study of Africa - Entrevista conduzida por Vanessa S. Oliveira (p. 143)
- África em debate
- Poderes e identidades
- Dzou Tsanga Remy - Prospections archéologiques dans le Diamaré et ses environs (région de l’Extrême-Nord, Cameroun) (p. 155)
- Notas de leitura
- Maciel Santos - Jean Marc Bikoko. Le syndicalisme à la croisée des chemins – 50 ans aprés le début des indépendences en Afrique (p. 163)
- René Pélissier - Archives des douleurs avec l’espoir d’en sortir vivant (p. 167)
- Resumos (p. 185)
- Legendas das ilustrações (p. 189)
Editorial
O arquivo, no senso mais largo do termo, continua sendo tema central na historiografia africanista. Nesse dossiê, as potencialidades de certos arquivos, assim como as suas problemáticas, são analisadas em relação à África Austral, com enfoque em Angola e Moçambique. Os artigos aqui incluídos são resultado da crítica e da maturação de ideias inicialmente apresentadas pelos seus autores durante o Seminário Internacional “Cultura, Política e Trabalho na África Meridional”, que teve lugar na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (Brasil), entre 11 e 14 de maio de 2015. O evento foi promovido pelo Centro de Pesquisa em História Social da Cultura – CECULT (IFCH-UNICAMP) e pelo Harriet Tubman Institute for Research on Africa and its Diasporas (York University).
Os textos abordam as potencialidades de vários arquivos em relação à África Austral lusófona num largo marco temporal, que se estende desde o século XVII até ao presente. Seguindo as diretrizes mais amplas do mencionado seminário, todos os artigos valorizam a exploração de novos arquivos ou uma releitura de fontes primárias clássicas para construir um conhecimento mais complexo do passado africano.
Em “The Arquivo da Comarca Judicial de Benguela: Problems and Potentialities”, José C. Curto, Frank J. Luce, e Catarina Madeira-Santos apontam para a importância da documentação judiciária na reconstrução do passado africano, concentrando suas análises nos fundos do Arquivo da Comarca Judicial de Benguela (ACJB), especialmente entre meados e fim do século XIX. Grandes dificuldades de acesso foram recentemente encontradas neste arquivo por uma equipa internacional de historiadores com base na York University. Todavia, foi possível fazer um primeiro inventário de alguns dos processos mais antigos lá encontrados, o qual mostra claramente o seu valor histórico. Os fundos do ACJB trazidos aqui à luz por Curto, Luce e Madeira-Santos são imprescindíveis, embora de díficil acesso, para a história social da região centrada em agentes subalternos, a história jurídico-litigiosa em contexto colonial, a história da transmissão de bens através de herança e a sua circulação entre membros das sociedades escravistas costeiras, ou até para o estudo do uso da justiça colonial por parte de africanos livres, libertos ou escravizados.
Estevam C. Thompson, na sua contribuição “Fontes coloniais para uma história pré-colonial de Benguela, séculos XVII a XIX”, visita o tema do uso da categoria “colónia” para descrever sociedades da região de Angola no período considerado por africanistas como “pré-colonial”. Ao centrar-se na região de Benguela antes do fim do século XIX, o autor conduz a sua análise através de uma série impressionante de fontes primárias publicadas, maioritariamente em português, incluídas em anexo. A sua conclusão, contrariamente à de outros especialistas com os quais dialoga, é que, do ponto de vista africanista, é impossível utilizar o termo “colónia” para descrever sociedades da região de Benguela antes das últimas décadas do XIX. Ao contrário, as numerosas fontes primárias publicadas têm de ser verdadeiramente dissecadas através de uma leitura bastante crítica, atenta ao lugar de fala e às condições de produção dessa documentação, para se poder efetivamente reconstituir uma história pré-colonial africana.
No artigo “Entre o colonizador e o colonizado: Reflexões em torno da pertença e acessibilidade do corpus documental sobre a delimitação e demarcação das fronteiras de Moçambique”, Ana Roque reflete sobre os desafios enfrentados por moçambicanos na recuperação da sua história, particularmente quando as fontes que detalham esse passado estão espa lhadas em arquivos e institutos pelo mundo. É precisamente esse o caso do Arquivo de Fronteiras, que se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino e no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, ambos em Lisboa. Apesar da relevância destes documentos para a resolução de disputas territoriais entre Moçambique e territórios vizinhos, poucos podem ser lidos on-line. A coleção permanece, na sua maior parte, inacessível ao público moçambicano que não dispõe nem mesmo de cópias no seu Arquivo Nacional.
Em “Trabalhadores moçambicanos na África do Sul: bastidores da controvérsia entre Marvin Harris e António Rita-Ferreira”, Lorenzo Macagno utiliza uma entrevista pessoal com o antropólogo amador português e antigo administrador colonial em Moçambique, António Rita-Ferreira, e a correspondência trocada entre este e o antropólogo americano Marvin Harris, para analisar o antagonismo que se desenvolveu entre os dois no contexto da crescente pressão internacional contra o colonialismo português em África durante as décadas de 1950 e 1960. O autor mostra claramente que as obras sobre Moçambique publicadas principalmente por antropólogos não-portugueses, a exemplo de Harris, assim como por vários historiadores, causaram profunda preocupação às autoridades coloniais e governamentais portuguesas. A pesquisa realizada por Harris sobre as condições económicas dos moçambicanos, o trabalho utilizado nos sistemas de cultivo de algodão e de outras matérias-primas e a migração de trabalhadores moçambicanos para as minas sul-africanas, não só expuseram as realidades da pobreza e as práticas de trabalho forçado na colónia, mas também permitiram que ele forjasse laços com ativistas anticoloniais como António de Figueiredo. As suas pesquisas resultaram na publicação de obras que criticavam abertamente o domínio colonial português em Moçambique e o luso-tropicalismo, ao mesmo tempo que abriram caminhos para que desenvolvesse as suas teorias sobre o materialismo cultural.
Frank J. Luce, na sua contribuição “Canadian Missionaries, Angolan Protestants, and the PIDE: research sources”, avalia criticamente um relatório anónimo do fundo PIDE, do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, produzido durante a guerra de libertação em Angola, incluindo a identidade do seu autor e o motivo para o escrever. O conteúdo encontrado em documentos da PIDE, como sublinhado por Luce, nem sempre é confiável: declarações não assinadas com conteúdo forjado foram muitas vezes atribuídas às vítimas dos funcionários da PIDE. O dito relatório fornece provas úteis acerca do “estado de espírito” dos funcionários da PIDE, dos seus métodos de recrutamento de informantes e como as autoridades coloniais se prepararam para promover a campanha da PIDE – especialmente contra os protestantes da West Central African Mission (WCAM) no planalto angolano. Todavia, a PIDE não era simplesmente “paranóica” no que diz respeito às motivações dos missionários protestantes. Luce mostra claramente haver uma ligação entre os missionários da WCAM e o surgimento dos movimentos de independência liderados por estudantes angolanos no exterior apoiados por missionários protestantes.
No artigo, “Color lines according to the photographer Ricardo Rangel”, Drew A. Thompson utiliza o arquivo fotográfico deixado por Ricardo Rangel, assim como várias entrevistas, para investigar o trabalho deste indivíduo – frequentemente (mas erradamente) comemorado como o primeiro fotógrafo de imprensa não-branco de Moçambique –, no período em que o território passou de colónia a nação independente. Traçando a carreira de Rangel através da evolução da fotografia profissional na colónia de Moçambique, bem como da implantação do sistema de política racial e da censura da imprensa, o autor tenta entender como as práticas de fotografar ou sentar-se diante das câmaras tiveram um impacto na formação de um novo tipo de consciência social e política que surgiu em Moçambique entre 1940 e 1974. Ele destaca como a população, particularmente em Lourenço Marques, desenvolveu vocabulários visuais através dos quais as pessoas podiam perceber-se e localizar-se dentro das mudanças sociais, económicas e políticas ocorridas ao longo destas décadas. Comparando negativos fotográficos e impressos, o autor expõe as manipulações racialmente motivadas do colonizador na representação visual da sociedade colonial para o público tanto na colónia como na metrópole – um método utilizado pelo próprio Rangel mas com finalidade completamente diferente.
O presente dossiê traz, assim, contribuições significativas para a construção de um conhecimento mais amplo e complexo do passado africano através da utilização de novos arquivos e/ou uma nova leitura de fontes primárias publicadas. Os diversos artigos aqui apresentados efetivamente abrem novos campos analíticos em relação à África Austral lusófona no período entre o século XVII e o momento atual.
José C. Curto
Silvia Hunold Lara
Lucilene Reginaldo
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Capa: ver Legendas das ilustrações, p. 189
Para leitura integral: https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/issue/view/539