Письмо исследователя

A Corrupção no Estado Pós-Colonial em África. Duas Visões Literárias

 

Índice:
Introdução
01. Enquadramento teórico
1. O fenómeno da corrupção
1.1. A corrupção nos países africanos: os casos de Angola e de Moçambique
1.2. A Literatura e a denúncia da corrupção
02. A corrupção: duas visões literárias
2. A corrupção na literatura angolana e moçambicana pós-colonial
2.1. O Último Voo do Flamingo
2.1.1. O Tradutor: um narrador incriminatório
2.1.2. A corrupção em O Último Voo do Flamingo
2.2. Jaime Bunda, Agente Secreto
2.2.1. Quatro narradores: quatro testemunhas de acusação em Jaime Bunda, Agente Secreto
03. Mia Couto e Pepetela: encontros E desencontros
3.1. Duas gerações: o contexto
3.2. Estrutura e estratégias adoptadas
Conclusão
Bibliografia
Activa
Geral


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FRADE, Ana Maria Duarte. 2007. A Corrupção no Estado Pós-Colonial em África. Duas Visões Literárias. Porto: CEAUP - Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. http://www.africanos.eu

Introdução

A corrupção não conhece fronteiras geográficas nem históricas. O fenómeno atinge todas as sociedades e poderá pôr em causa o próprio sistema democrático. O sufrágio, mesmo quando, efectivamente, é universal e directo, pode não ter em conta certas realidades ocultas que contribuem para adulterar a justiça dos seus resultados. O financiamento dos partidos políticos, os jobs for the boys, a promiscuidade entre o mundo do futebol e o poder local, o aparecimento de poderosas organizações criminosas à escala global geram outras formas de representação, mecanismos de poder e de contrapoder que se sobrepõem ao modo normal e legítimo do exercício da soberania.
"As situações em que um funcionário (...) solicita ou aceita uma vantagem patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) que traduz o exercício efectivo do cargo em que se encontra investido" (Costa, 2001: 655) são categoricamente condenadas no chamado mundo ocidental. O mesmo se passa porventura com muitas outras condutas que embora não caibam nos tipos legais de crime são reprovadas do ponto de vista social. Exige-se do funcionário a persecução do interesse público mediante uma actuação pautada pela observância estrita da legalidade, da transparência, da objectividade e da independência. O particular não pode abusar das suas funções, substituindo-se ao Estado e invadindo a sua área de actuação. Não pode utilizar o Estado, o poder que o exercício das suas funções lhe confere, para seu proveito pessoal.
A corrupção (independentemente da sua tipificação ou não como crime) é, todavia, de certa forma, legitimada nas sociedades africanas desde que alimente uma rede de clientes (Chabal e Daloz, 2001: 157) e serve para a manutenção de uma economia informal, paralela, onde os vínculos familiares, os grupos, as cores políticas, o status, desempenham um papel muito importante. A racionalidade administrativa, com todos os princípios e deveres que lhe andam associados no mundo ocidental, dá lugar a outras lógicas, a discursos alternativos, a linguagens diferentes, que só uma análise global e socialmente inserida permite desvendar e compreender.
A nossa análise centra-se na corrupção, no Estado pós-colonial, através do testemunho de dois escritores paradigmáticos. Mia Couto e Pepetela revelam em O Último Voo do Flamingo e Jaime Bunda, Agente Secreto, respectivamente, um mecanismo de funcionamento do próprio Estado. Com um Estado não institucionalizado, não burocrático, neo-patrimonial e que não consegue afirmar-se como entidade abstracta, autónoma e diferente dos seus titulares, as formas de controlo não existem. Mesmo os órgãos que, pretensamente, o deviam fazer estão contaminados. A infecção também os atingiu, impedindo-os de desempenharem, cabalmente, as suas funções. Utilizando a clarificadora síntese de uma personagem de Tahar Bem Jelloun, “neste país, os ladrões são protegidos, os corruptos encorajados e as pessoas honestas perseguidas” (1995: 141). A própria sociedade civil, talvez por debilidade, não encontra mecanismos de tutela, capazes de superar o problema ou, pelo menos, reduzir a sua frequência a uma margem ainda aceitável. No fundo ela também é conivente, olhando esses comportamentos com muita indulgência, na expectativa de um dia também gozar dos seus avultados benefícios.
A independência, que prometia melhores condições de vida para o povo colonizado, traduziu-se numa longa guerra civil motivada pelo egoísmo de alguns, pela ânsia de poder e de riqueza, ainda que por meios ilícitos, de outros. A falta de transparência de uma Administração Pública, que perdeu os seus quadros mais qualificados, a fome e a miséria favoreceram a corrupção. Os novos detentores do poder aproveitaram todas as oportunidades proporcionadas pelos dois paradigmas políticos que marcaram o período que se seguiu à independência formal. Primeiro o marxismo, depois o liberalismo serviram para a concretização dos interesses individuais. Duas conjunturas para os mesmos rostos. As elites recicladas não abdicaram de continuar a enriquecer de forma ilícita. Só o povo continua a sofrer, esquecido. Mudaram-se apenas as etiquetas.
Começamos por abordar, no primeiro capítulo, o conceito de corrupção e a sua legitimidade social nos países subdesenvolvidos, particularizando o caso de Angola e de Moçambique. Estará em causa não o conceito jurídico, de contornos claramente definidos e limitados, mas o conceito corrente, tal como emerge nas representações sincréticas do quotidiano. A análise não será, portanto, jurídica mas literária. Melhor: serão duas visões literárias da corrupção no Estado pós-colonial de Angola e de Moçambique.
Os anos 90 do século passado, considerados como a década do vazio filosófico e do capitalismo selvagem, assistiram à “utilização das lógicas e das potencialidades da globalização para a organização do crime” (Rodrigues, 1999: 12). O fenómeno da corrupção agravou-se. Os números, na sua frieza habitual, são inequívocos. As estatísticas demonstram o seu peso crescente. A década de noventa, do século XX, é a década da confirmação da morte de um sonho. Nem o projecto marxista, nem o neo-liberalismo contribuíram para o concretizar da utopia. Os países africanos estão cada vez mais marginalizados num mundo global, mas ao mesmo tempo alimentam o mundo dos ricos, dos poderosos, numa teia de corrupção, de tráfico de armamento, de exploração humana, de branqueamento de capitais (complemento natural daqueles) que ameaça a sua própria sobrevivência.
Esta situação calamitosa, principalmente quando observada pelos olhos de um ocidental, treinados para repudiarem esses comportamentos, tem certamente reflexos na narrativa literária pós-colonial, como demonstra uma simples abordagem sincrónica. O relacionamento da literatura com o tema da corrupção, acentuou-se no fechar do século XX, consistindo o tema central ou, pelo menos, lateral de muitas obras. As referências multiplicaram-se e confirmam uma mudança de paradigma. A independência esgotou o anterior filão e, em consequência, arrastou outras temáticas mais ajustadas às novas realidades. Os temas em voga são agora outros. O combate é muito diferente. A ameaça já não está no colonizador, na falta de afirmação de uma identidade nacional, mas na necessidade de criar uma nova utopia. Uma sociedade mais justa, baseada na igualdade de oportunidades e de direitos. A denúncia da corrupção tornou-se uma necessidade imperiosa e foi ganhando expressão crescente.
Analisar de que forma o fenómeno é ficcionado, através de dois escritores que estiveram comprometidos com o nacionalismo, abraçando um projecto de modernidade, nem sempre consentâneo com a tradição africana, é uma das intenções primordiais deste trabalho, a focar no segundo capítulo, e tem como fontes as obras literárias já designadas. O Último Voo do Flamingo e Jaime Bunda, Agente Secreto são o ponto de partida para uma viagem por universos ficcionais diferentes, que partiram de matrizes, discursos e pressupostos diversos, mas que se unificam e complementam pela análise do mesmo problema formando uma unidade substancial: um longo, coerente e contundente libelo anti-corrupção. Esta unidade substancial será, no entanto, obra de um feliz acaso ou corresponde ao pulsar profundo de duas sociedades marcadas pela corrupção? Nesse caso, mais do que duas visões literárias, teremos dois documentos sociológicos, contributos para uma verdadeira análise social. Em suma: duas visões cifradas da realidade e que se corroboram mutuamente.
Ao desmontarmos os universos narrativos, não pretendemos, todavia, retirar o encanto das obras literárias. Tal com Pierre Bordieu afirma: “O encanto da obra literária liga-se de certo em grande parte ao facto de ela falar das coisas mais sérias, sem exigir, diferentemente da ciência segundo Searle, que a tomemos inteiramente a sério. A escrita oferece ao próprio autor e ao leitor a possibilidade de uma compreensão denegante, que não é porém uma compreensão até meio” (Bordieu, 1996: 55).
Após a análise da representação da corrupção nestes dois escritores paradigmáticos, importa apurar em que circunstâncias a sua criação literária se processa, partindo das experiências quotidianas individuais e não esquecendo a geração e o contexto ideológico de ambos. Entramos, assim, no último capítulo, no âmbito da literatura comparada, verificando as aproximações e os afastamentos dos textos literários dos dois escritores, enquanto instâncias autorais que problematizam a realidade coeva. São apenas encontros e desencontros, pontes, visões convergentes e divergentes, contradições ...

Não obstante a importância e a dimensão do fenómeno da corrupção – capaz de lhe conferir dignidade de assunto literário –, falta uma reflexão crítica actual sobre a sua influência na literatura. Esta influência não foi ainda inventariada, nem discutida. As razões da sua existência também ainda não foram apuradas, ponderadas e analisadas com rigor científico. Se os autores escolheram o fenómeno da corrupção para tema central das suas obras é porque o consideram extremamente importante. Não será, certamente, apenas um mero exercício egoísta de puro virtuosismo literário! Talvez procurem, como bem dizia Cunha Rodrigues, “difundir uma cultura cívica que recrie valores numa óptica de liberdade e de igualdade” (1999: 29).
Pisamos, portanto, terreno virgem. No domínio penal, criminológico e sociológico há muitos companheiros de viagem. A sua leitura completa é praticamente impossível. Faltariam sempre autores importantes, obras de referência deste ou daquele canto do mundo. Já no campo da crítica literária caminhamos quase sempre sozinhos. Os nossos acompanhantes ocasionais não partilham dos mesmos objectivos e, até quando nos cruzamos, é por pouco tempo e para logo prosseguirmos por veredas diferentes.
Viajamos, assim, acompanhados apenas pelo “Flamingo” e pelo “Jaime”. Mas as personagens que eles convocam (na sua polifonia) são vozes suficientes para que não nos sintamos sozinhos. É claro que, de vez em quando, socorremo-nos de outras testemunhas oculares, oriundas da literatura, do direito, da sociologia, da antropologia. Nesses casos, elas servem apenas para conferir maior expressão àquele dueto. São a sua harmonia.
No final, esperamos ter demonstrado que também a literatura é um importante e imprescindível instrumento de denúncia da corrupção, contribuindo para a caracterização do Estado pós-colonial.

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