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Editorial – Arqueologia angolana – uma abordagem geo-epistemológica
A regionalização científica é um fenómeno raramente abordado de um ponto de vista epistemológico. É comum a História da Ciência dedicar a sua atenção ao ‘espírito do tempo’ dos programas de investigação científica mas quase nunca se toma em consideração um equivalente genius loci.
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Não contando com explicações essencialistas (como sendo a de que algumas nacionalidades estariam mais aptas do que outras a decifrar os enigmas da Natureza e da Sociedade) temos de tomar em consideração as várias geografias e os respectivos gradientes de que influenciam e se resultam naquela morfologia. Se a ‘geografia da Ciência’ se compreendesse como expressão da riqueza ou avanço técnico em cada momento histórico, poderia argumentar-se que seria apenas uma localização concreta de um conhecimento universal; porém, se se considerar que os conteúdos científicos podem ser diferentes consoante a localização dos centros da sua produção, então o problema deixa der ser meramente económico e social para ser também um problema epistemológico.
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A apreciação dos lugares aqui mencionados far-se-á naturalmente através da leitura dos artigos correspondentes. Nem todos pertencem ao mesmo programa de investigação nem estes possuem o mesmo grau de integração da pesquisa. Alguns mencionam-se apenas pela indicação que dão das novas preocupações da política pública angolana do património arqueológico, como M’Banza Kongo ou Tchitundo Hulo, outros configuram programas robustos de investigação minuciosamente explicitados e já plenamente no terreno, como o Dungo, em Benguela ou a arte rupestre dos abrigos do Ebo, ou ainda em fase prospectiva, os casos dos recintos amuralhados da Huíla e do litoral do Namibe. As cronologias são distintas – desde o Paleolítico inferior até momentos tardios da Modernidade – como o também são a articulação geográfica regional e o arranjo ‘cronotópico’ que exibem.
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A informação referente à topografia social fez-se a partir da identificação das instituições envolvidas na produção da arqueologia científica tal como aqui podemos ter acesso a ela. Podemos entrever as linhas de força de um gradiente global de produção científica que se articula e concretiza regionalmente (num estado) e localmente em lugares de investigação e recolha de informação arqueológica.
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Trata-se de explicitar que diferentes geografias de produção científica se sucedem e sobrepõem – uma ‘arqueologia da Arqueologia’ – ao longo das últimas décadas e decerto se relacionarão com os diferentes produtos científicos validados.
A primeira fase (1960s-1974) corresponde plenamente ao momento da relação de um poder colonial com o objecto ‘ultramarino’. Centrada quase exclusivamente em lugares metropolitanos ou desta administração no território (muito significativas, a este título, as localizações do Dundo e Sá da Bandeira-Lubango), a interpretação do passado faz-se no contexto paradigmático da diferenciação cultural e do evolucionismo subjacente e as instituições que a levam a cabo são a expressão directa da ocupação administrativa ou económica de um território colonial, como são exemplos a Junta de Investigações do Ultramar ou a Companhia de Diamantes de Angola.
A segunda fase, iniciada com a conquista da independência, revela uma progressiva descentralização do sistema de produção científica em relação ao poder metropolitano. As instituições angolanas adquirem a natural centralidade que a independência traz (e que não mais deixará de aprofundar-se) mas revela ainda assim, para além dos contactos pioneiros com a Arqueologia francesa, uma modicidade que o estado quase permanente de perturbação causada pela guerra decerto justifica.
A terceira fase parece indiciar a autonomia progressiva da co-produção científica no âmbito da arqueologia angolana. Não apenas a liaison française se acentua e aprofunda como se recupera, em novos moldes, a relação em tempos assimétrica com a Arqueologia portuguesa. Neste caso é estimulante constatar que aos centros ‘clássicos’ da produção científica portuguesa, académica ou editorial, se associam, e em lugar proeminente, novos lugares de investigação académica que a descentralização democrática trouxe a Portugal. Em Angola instituições especializadas surgem no contexto da normalização institucional progressiva, e Benguela adquire uma centralidade expressiva pela localização não-centralista de uma das principais instituições com supervisão directa no domínio do estudo e salvaguarda do passado.
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Finalmente, partindo da articulação integrada dos níveis geo-epistemológicos estruturais definidos, que cenários e metamorfoses paradigmáticas se podem detectar na expressão histórica (e geográfica) destes programas de investigação? Com receio de simplificar em demasia uma realidade que é decerto muito mais complexa do que os ‘artefactos aqui utilizados permitem revelar, cremos que é possível ainda assim individualizar nesta narrativa científica – cimentada por uma especial articulação entre as estações intervencionadas, a origem institucional dos investigadores e a ‘norma científica’ disponível para cada geração – três ‘cronótopos’ epistemológicos, três configurações espácio-temporais da cultura científica da exploração arqueológica em Angola.
Pelas relações com as regiões vizinhas da África central, do vale do Zambeze, do vale do Rift, o passado mais ou menos remoto de Angola estabelece relações de identidade e autonomia cultural da sua ‘africanidade’.
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Neste longo passado o período colonial é especialmente representativo, porque fez incidir marcas na paisagem fruto de uma ocupação ‘técnica’ da paisagem. Ainda que as motivações da sua recuperação possam variar, a justificação de uma arqueologia do período colonial justifica-se porque este é também uma ‘arqueologia de resistência’
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Mas adivinha-se um âmbito mais vasto da arqueologia angolana. A história passada e recente do território é também a das gentes que saídas de África se viram obrigadas, pela violência e pela necessidade, a habitar novos lugares e a conviver com novas gentes. Uma ‘arqueologia da diáspora’ começa insensivelmente a desenhar-se nas preocupações dos responsáveis angolanos pelo estudo do seu passado, e a procura dos ‘materiais da memória’ far-se-á para além das fronteiras do território da nação, e abarcará metade da esfera da terra.
José Ramiro Pimenta
CEAUP
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