Índice:
- Nota de Abertura
- Prefácio
- Luc de Heusch - Pour Marie-Louise Bastin
- Jill Dias - Caçadores, Artesãos, Comerciantes, Guerreiros: Os Cokwe em perspectiva histórica
- Boris Wastiau - Style and ethnicity: reflections on methods for the study of arts in the Zambezi and Kasai headwaters
- Manuel Jordán - Zambian Makishi Masquerades and the Story of Categories
- Manuela Palmeirim - As duas Faces de Ruwej: Da Ambiguidade no Pensamento Simbólico dos Aruwund (Lunda)
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HEUSCH, Luc de & Jill Dias & outros. 1999. A Antropologia dos Tshokwe e Povos Aparentados. Papers of A Antropologia dos Tshokwe e Povos Aparentados, 2003, at FLUP - Porto
Prefácio
O Colóquio "A Antropologia dos Tshokwe e Povos Aparentados", integrado na homenagem prestada à Prof.a Marie-Louise Bastin pela Universidade do Porto, reuniu uma equipa de antropólogos e historiadores de excelente qualidade, com uma importante experiência de trabalho de campo entre os Tshokwe.
As comunicações apresentadas e publicadas nestas Actas revelam um exame crítico e minucioso das tradições orais, dos factores mágico-religiosos, dos complexos rituais simbólicos e ideológicos, dos mitos, histórias ou lendas, que enformaram as sociedades e culturas dos povos Tshokwe, na encruzilhada de diversos contributos sócio-culturais: Mbundos, Lundas, Luenas, Luvales e outros que partilhavam laços históricos e sociais e práticas rituais comuns. Estes trabalhos salientam a importância da contextualização histórica e espacial na análise das observações dos cronistas e viajantes, transmitidas com distorções etnocêntricas e ideológicas no contexto de uma determinada missão ou expedição, convocando assim perspectivas de longa duração na interpretação de processos culturais e simbólicos e de estratégias políticas quanto às formações sociais e à construção de identidades culturais.
Emancipando-se da hegemonia de teorias meramente abstractas e realizando uma síntese eficiente do trabalho teórico e do trabalho de campo, os autores confirmam a mudança do paradigma do eurocentrismo para paradigmas dominantes do desenvolvimento cultural endógeno africano, numa ruptura definitiva com a chamada "política do espelho" associada à imagem de um desenvolvimento cultural de África que confirmasse os pressupostos desenvolvimentistas europeus.
Em 1885, os Tshokwe conquistaram o "império" Lunda, a nordeste de Angola, florescente do século XV ao século XIX, constituído por uma rede de sociedades e de organizações políticas culturalmente aparentadas, que se estendiam de Angola ao Malawi, até aos confins do Zaire e da Zâmbia. Os Tshokwe, povos guerreiros e comerciantes, organizavam-se segundo um sistema original de títulos relativos aos chefes de linhagens, estruturando-se num sistema de parentesco mítico. As colonizações portuguesa e belga forçaram-nos a emigrar cada vez mais para leste, para a região do Alto Kassai, fixando alguns grupos em territórios da actual República Democrática do Congo e do Noroeste da Zambia. Outros grupos expandiram-se, depois, para sul, em Angola, do Cunene ao Cuanhama. Originários de uma civilização de caçadores das savanas, os Tshokwe impuseram-se na arte da caça e do comércio de marfim. Sendo povos prevalentemente matrilineares, as representações femininas constituem um facto cultural predominante, sobretudo nas máscaras de madeira que gozam de uma reputação internacional.
A cultura Tshokwe caracteriza-se por um sistema social relativamente homogéneo, construído através de um pluralismo diverso e coerente. Foi no âmbito das relações intra-societais Tshokwe e na encruzilhada de relações com povos aparentados, constituídas através de rivalidades e alianças, de conquistas e submissões, de invenções e apropriações, formando uma unidade interna e um pluralismo coerente do reino Lunda, que se fundamentou a vitalidade do contexto artístico Tshokwe. Este foi identificado pelos críticos de arte pelo poder da sua expressividade, elogiado pela subtileza dos seus arranjos formais, admirado pela sua dignidade austera e pela serenidade das suas figuras escultóricas. Os artistas Tshokwe foram os mais famosos da região, devido às suas estátuas de chefes e de antepassados deificados, de grande dimensão, chamadas hamba, que exaltavam a força e a dignidade humana, e pelas estátuas mahamba associadas às actividades da caça, do amor, da magia e da fertilidade.
A representação mais célebre foi a estatueta de Tshibinda Ilunga, filho mais novo do grande chefe luba Kalala Ilunga e herói caçador luba, que teria ensinado aos Lundas a arte da caça e as técnicas de forjar o ferro. Com ele iniciou-se a dinastia do MwataYamvo, da Lunda.
O Museu do Dundo, em Angola, "um dos grandes museus mundiais de arte e de etnografia africana", como refere Ernesto Veiga de Oliveira, teve um papel notável na expressão e na divulgação da cultura Tshokwe. Não foi uma galeria para conservar objectos recolhidos, nem tão pouco para arquivar vestígios dissecados, mas um meio para ajudar à compreensão dos Tshokwe e povos aparentados, pondo em relevo a experiência da diversidade das manifestações culturais. Contribuiu, assim, para a análise científica da realidade cultural da Museologia, evidenciando, como refere Marcel Mauss, que a cultura material, como aliás qualquer âmbito da cultura, assume o significado total do grupo social a que pertence.
Em Portugal, realizou-se um trabalho referencial de tratamento e de inventariação das colecções de arte Tshokwe, nomeadamente no Museu de Etnologia de Lisboa, no Museu de Antropologia de Coimbra e no Instituto de Antropologia Dr. Mendes Corrêa no Porto.
Três desafios importantes atravessaram este Colóquio: o primeiro consistiu na defesa intransigente das políticas contra as pilhagens do património cultural de África; o segundo sublinhou a emergência de novos valores e análises científicas da etno-museologia, pelo desenvolvimento de uma política cultural e científica de acções de cooperação entre museus e coleccionadores particulares; o terceiro apelou para a implementação do estudo e da formação em arte africana em Portugal.